Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…
FERNANDO PESSOA
EBERHARD / PEXELS.COM
Assentamento
Infinitas formas
É interessante contemplar um barranco intrincado, atapetado com plantas de todos os tipos, com pássaros cantando nos arbustos, com vários insetos voando aqui e ali e vermes rastejando pela terra úmida, e refletir que essas formas elaboradamente construídas, tão diferentes umas das outras, e dependentes uma das outras de um modo tão complexo, foram todas produzidas por leis que atuam à nossa volta. […] Assim, da guerra da natureza, da fome e da morte, forma-se o mais exaltado objeto que se é capaz de conceber, nomeadamente, a produção de animais complexos. Há grandeza nessa noção da vida, com seus vários poderes, tendo sido originalmente soprada em algumas poucas formas ou em apenas uma; e que, enquanto o planeta girava de acordo com a lei fixa da gravidade, de um início tão simples, um número infinito de formas, as mais belas e maravilhosas, evoluiu e continua a evoluir.
Charles Robert Darwin (1809-1882), Origem das espécies, 1ª edição.
Grande oceano da verdade
Não sei o que posso aparentar ao mundo, mas a mim mesmo pareço ser apenas um menino brincando à beira da praia, e me divertindo de vez em quando ao encontrar uma pedra mais polida ou uma concha de beleza singular, enquanto o grande oceano da verdade estende-se indescoberto diante de mim.
Isaac Newton (1643-1727), Memoirs of the life, writings and discoveries of Sir Isaac Newton (1855), de David Brester (volume 2, capítulo 27).
Arena cósmica
As fotografias Apollo da Terra inteira transmitiram às multidões algo bem conhecidos dos astrônomos: na escala de mundos – para não falar da escala de estrelas ou galáxias – os seres humanos são insignificantes, uma película fina de vida sobre um bloco obscuro e solitário de rocha e metal.
Parecia-me que outra fotografia da Terra, tirada de um ponto de centenas de milhares de vezes mais distantes, poderia ajudar no processo continuo de revelar-nos nossa verdadeira circunstância e condição. Os cientistas e filósofos da Antigüidade clássica tinham compreendido muito bem que a Terra era um simples ponto num vasto cosmo circundante, mas ninguém jamais a vira nessa condição. Era a nossa primeira oportunidade (e também a última em várias décadas).
[…]
Assim, aqui estão elas – um mosaico de quadrados dispostos sobre os planetas e uma coleção heterogênea de estrelas mais distantes ao fundo. Não só conseguimos fotografar a Terra, mas também outros cinco dos nove planetas conhecidos que giram em torno do Sol. […]
A partir dessa distância, os planetas parecem apenas pontos de luz, nítidos ou não – mesmo através do telescópio de alta resolução a bordo da Voyager. […]
Nós podemos explicar o azul-pálido desse pequeno mundo porque conhecemos muito bem. Se um cientista extraterrestre, recém chegado às imediações do nosso Sistema Solar, poderia fidedignamente inferir oceanos, nuvens e uma atmosfera espessa, já não é tão certo. Netuno, por exemplo, é azul, mas por razões inteiramente diferentes. Desse ponto de observação, a Terra talvez não apresentasse nenhum interesse especial.
Para nós, no entanto, ela é diferente. Olhem de novo para o ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “lideres supremos”, todos os santos e pecadores da historia da nossa espécie, ali – num grão de poeira suspenso num raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração desse ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes de um canto desse pixel contra os habitantes mal distinguíveis de algum outro canto, em seus frequentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, tudo é posto em dúvida por esse ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, em meio a toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.
A Terra é, até agora, o único mundo conhecido que abriga a vida. Não há nenhum outro lugar, ao menos no futuro próximo, para onde nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Goste-se ou não, no momento a Terra é o nosso posto.
Tem-se dito que a astronomia é uma experiência que forma o caráter e ensina humildade. Talvez não exista melhor comprovação da loucura das vaidades humanas do que esta distante imagem de nosso mundo minúsculo. Para mim, ela sublinha a responsabilidade de nos relacionarmos mais bondosamente uns com os outros e de preservarmos e amarmos o pálido ponto azul, o único lar que conhecemos.
Carl Sagan (1934-1996), Pálido ponto azul.
Grande renúncia
Mas há na resignação um outro bom elemento: […] a todo homem chega, cedo ou tarde, a grande renúncia. Para o jovem, não existe nada inalcançável. Não lhe parece crível que algo bom e desejado com toda a força de uma vontade apaixonada seja impossível. Mas, ou por meio da morte ou da doença, da pobreza ou da voz do dever, temos de aprender, cada um de nós, que o mundo não foi feito para nós e que, não importa quão belas as coisas que almejamos, o destino pode, não obstante, proibi-las. É parte da coragem, quando a adversidade vem, suportá-la sem lamentar a ruína de nossas esperanças, afastando os nossos pensamentos de remorsos vãos. Esse grau de submissão […] não é somente justo e correto: ele é o verdadeiro caminho da sabedoria.
Bertrand Russel (1872-1970), A Free Man’s Worship.
Mal corporificado em nós
Ao longo das eras do desenvolvimento humano, os seres humanos estiveram sujeitos a dois tipos de infortúnios: aqueles impostos pela natureza externa e aqueles que eles mesmos equivocadamente infligiram uns aos outros. De início, os piores males foram de longe os causados pelo ambiente. O homem era uma espécie rara, cuja sobrevivência era precária. Sem a agilidade do macaco, sem qualquer camada de pelo, ele tinha dificuldade em escapar de animais selvagens, e na maioria das partes do mundo não suportava o frio do inverno. Ele tinha apenas duas vantagens biológicas: a postura ereta liberava suas mãos e a inteligência lhe permitia transmitir experiência.
[…]
Mas os males que os homens infligem uns aos outros não diminuíram no mesmo grau. Ainda há guerras, opressões e horrendas crueldades; homens vorazes abocanham ainda a riqueza daqueles que são menos habilidosos ou menos intrépidos que eles. O amor ao poder conduz ainda a vastas tiranias ou à mera obstrução quando suas formas mais grosseiras não são possíveis.
[…]
Tudo isso é desnecessário; não há nada na natureza humana que torne esses males inevitáveis.
[…]
Nossos problemas atuais se devem, mais do que a qualquer outra coisa, ao fato de que aprendemos a entender e controlar a forma aterrorizante das forças da natureza que são externas a nós, mas não aquelas corporificadas em nós mesmos.
Bertrand Russel (1872-1970), Sobre a natureza humana
Eterna é a própria vida
O acontecimento final […] é “incorporado à nossa alma”, a morte dá “a todos os acontecimentos que a precederam esta marca do absoluto que nunca possuiram se não viessem a interromper-se”. O absoluto habita em cada uma das nossas empresas na medida em que cada uma se realiza de uma vez para sempre; e nunca será retomada. Entra em nossa vida pela sua própria temporalidade. Assim, o eterno torna-se fluido, e reflui do fim ao coração da vida. A morte já não é a verdade da vida, a vida já não é a expectativa do momento em que a nossa essência será alterada [interrompida]. O que sempre há de incoactivo, de incompleto e de constrangedor no presente já não é um sinal de menor realidade. Mas, então, a verdade de um ser já não é aquilo em que se tornou no fim, ou a sua essência, mas o seu devir ativo ou seu próprio existir. E se, como Lavelle dizia em tempos, nos julgamos mais perto dos mortos que amámos do que dos vivos, é porque já não nos põem em dúvida [os mortos] e daqui para a futuro podemos sonhá-los ao nosso gosto. Essa piedade é quase ímpia. A única recordação que lhes diz respeito é a de que se refere ao uso que faziam de si próprios e do próprio mundo, o acento da liberdade na incompletude da vida. O mesmo frágil princípio faz-nos viver e dá ao que fazemos um sentido inesgotável.
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Elogio da filosofia.
Inventores de mundos
O fato é que os homens se recusaram a ser aquilo que, à semelhança dos animais, o passado lhes propunha. Tornaram-se inventores de mundos. E plantaram jardins, fizeram choupanas, casas e palácios, construíram tambores, flautas e harpas, fizeram poemas, transformaram os seus corpos cobrindo-os de tintas, metais, marcas e tecidos, inventaram bandeiras, construíram altares, enterraram os seus mortos e os prepararam para viajar e, na sua ausência, entoaram lamentos pelos dias e pelas noites.
Rubem Alves (1933-2014), O que é religião.
Ignorância natural
As ciências têm duas extremidades que se tocam: a primeira é a pura ignorância natural em que se encontram todos os homens ao nascer; a outra extremidade é aquela à qual chegam as grandes almas que, tendo percorrido tudo que o homem pode saber, descobrem que nada sabem e se enctram na mesma ignorância da qual partiram. Mas é uma ignorância sábia que se conhece. Aqueles que ficam entre os dois, que saíram da ignorância natural e não puderam chegar à outra, têm algum vestígio [teinture] dessa ciência suficiente, e se fazem de entendidos. Esses atrapalham o mundo, e julgam mal as coisas.
Blaise Pascal (1623-1662), Razão dos efeitos.
Mundo impessoal
Era bastante claro para mim que o paraíso religioso da juventude, agora perdido, era uma primeira tentativa para que eu pudesse me libertar do “meramente pessoal”, de uma existência dominada por vontades, expectativas e desejos primitivos. Lá fora está esse mundo imenso, existindo independentemente de nós, seres humanos, enorme e eterno enigma, ao menos parcialmente acessível à nossa razão. Eu entendi que a contemplação desse mundo era uma nova forma de liberação […] A possibilidade de compreendermos esse mundo impessoal de modo racional tornou-se para mim, consciente ou inconscientemente, o objetivo supremo […] Talvez o caminho para esse paraíso não fosse tão confortável e seguro como o caminho para o paraíso religioso; mas ele provou ser confiável, e eu nunca me arrependi de minha escolha.
Albert Einsten (1879-1955), Notas autobiográficas.
Sentido da vida
O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando. Valerá a pena viver? A gravidade da pergunta se revela na gravidade da resposta. Porque não é raro vermos pessoas mergulhadas nos abismos da loucura, ou optarem voluntariamente pelo abismo do suicídio por terem obtido uma resposta negativa. Outras pessoas, como observou Camus, se deixam matar por ideias ou ilusões que lhes dão razões para viver: boas razões para viver são também boas razões para morrer.
[…] É algo que se experimenta emocionalmente, sem que se saiba explicar ou justificar. Não é algo que se construa, mas algo que nos ocorre de forma inesperada e não preparada, como uma brisa suave que nos atinge, sem que saibamos donde vem nem para onde vai, e que experimentamos como uma intensificação da vontade de viver ao ponto de nos dar coragem para morrer, se necessário for, por aquelas coisas que dão à vida o seu sentido. É uma transformação de nossa visão do mundo, na qual as coisas se integram como em uma melodia, o que nos faz sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos de um sentimento oceânico, na poética expressão de Romain Rolland, sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno de dimensões cósmicas.
Rubem Alves (1933-2014), O que é religião.
Compreensão humana
O humano só pode ser compreendido pelo humano – até onde pode ser compreendido; e compreensão importa em maior ou menor sacrifício da objetividade à subjetividade. Pois tratando-se de passado humano, há que deixar-se espaço para a dúvida e atépara o mistério.
Gilberto Freyre (1900-1987), Sobrados e mucambos.
Face oposta
Os temas mais humanos são os que nos revelam, em meio à confusão da vida, a íntima relação entre delícia e dor, entre o que nos ajuda e o que nos prejudica, sempre a balançar ante nossos olhos aquela medalha, dura e reluzente, de uma estranha liga metálica, que traz em uma das faces a fortuna de uma pessoa e, na face oposta, o infortúnio de outra.
Henry James (1843-1916), Pelos olhos de Maisie.
Vazio e dor
Eu não consigo explicar meus sentimentos para você; existe um certo vazio que me causa dor, um desejo nunca satisfeito, e que no entanto nunca cessa, sim, aumenta dia a dia… Eu também não encontro alegria no meu trabalho… se eu sento ao piano e canto algo de minha ópera, tenho de parar imediatamente, pois me afeta muito.
Carta de W. A. Mozart à esposa, julho de 1791.
Eis que há trevas
Não conhecem o caminho da paz, não há julgamento reto nos seus trilhos; fazem para si sendas tortuosas, todo aquele que por elas caminha não conhece a paz. Por isto o julgamento reto está longe de nós; a justiça não está ao nosso alcance.
Esperávamos a luz, e o que veio foram trevas; a claridade, e, no entanto, caminhamos na escuridão.
Como cegos que andam a apalpar um muro, sim, como os que não têm olhos, andamos às apalpadelas. Tropeçamos ao meio-dia como se fosse no crepúsculo; somos como mortos entre pessoas sadias.
Todos rugimos como ursos, vivemos a gemer como pombas; esperamos o direito, e nada! A salvação, mas ela ficou distante!
Terceiro Isaías (Trito-Isaías), cerca de V a.C., Velho testamento.
Dancem, macacos!
Existem bilhões de galáxias no Universo observável. Em cada uma delas, existem centenas de bilhões de estrelas. Em uma dessas galáxias, orbitando uma dessas estrelas, encontra-se um pequeno planeta azul. E este planeta é governado por um bando de macacos.
Mas esse macacos não pensam em si mesmos como macacos. Sequer pensam em si mesmos como animais. De fato, eles adoram listar todas as coisas que eles pensam separá-los dos animais: polegares opositores, autoconsciência, e usam palavras como Homo erectus e Australopithecus.
Eles são animais, certo? São macacos! Macacos com tecnologia de fibra ótica digital de alta velocidade. Mas, ainda sim, macacos…
Quero dizer, eles são espertos, você tem que admitir isso. As pirâmides, os arranha-céus, os jatos, a Grande Muralha da China, tudo isso é muito impressionante para um bando de macacos. Macacos cujo cérebro evoluiu a um tamanho tão ingovernável que agora é bastante impossível para eles ficarem felizes por muito tempo. Na verdade, eles são os únicos animais que pensam que deveriam ser felizes. Todos os outros animais podem simplesmente ser.
Mas não é tão simples assim para os macacos. Pois esses macacos são amaldiçoados com a consciência. E, assim, os macacos têm medo, os macacos se preocupam… Os macacos se preocupam com tudo, mas, acima de tudo, com o que todos os outros macacos pensam, porque os macacos querem desesperadamente se encaixar com os outros macacos. O que é bem difícil porque a maioria dos macacos se odeia. Isto é o que realmente os separa dos outros animais: esses macacos odeiam! Odeiam macacos que são diferentes, odeiam macacos de lugares diferentes, macacos de cores diferentes…
Sabe, os macacos se sentem sozinhos, todos os 7 bilhões deles!
Alguns dos macacos pagam outros macacos para ouvir seus problemas. Afinal, os macacos querem respostas…
Os macacos sabem que vão morrer; então, fazem deuses e os adoram. Então, os macacos começam a discutir quem fez o melhor deus. E os macacos ficam irritados! E, então, é quando eles geralmente decidem que é uma boa hora de começar a matar uns aos outros. Então, os macacos fazem guerras, fazem bombas de hidrogênio. Os macacos têm o planeta inteiro preparado para explodir. Os macacos não sabem o que fazer…
Alguns macacos tocam pra uma multidão vendida de outros macacos. Eles fazem troféus e, então, os dão para si mesmos, como se isto significasse alguma coisa!
Alguns dos macacos acham que sabem tudo. Alguns dos macacos lêm Nietzsche. Os macacos discutem Nietzsche… Sem dar qualquer consideração ao fato de que Nietzsche… era apenas outro macaco!
Os macacos fazem planos, os macacos se apaixonam, os macacos fazem sexo. E, então, fazem mais macacos!
Os macacos fazem música. E, então, eles dançam…
– “Dancem, macacos, dancem!”
Os macacos fazem muito barulho. Os macacos têm tanto potencial… se eles ao menos se dedicassem…
Os macacos raspam o pelo de seus corpos numa ostensiva negação de sua natureza de macaco. Eles constroem gigantes colmeias de macacos que eles chamam de “cidades”. Os macacos desenham um monte de linhas imaginárias sobre a Terra.
Os macacos estão ficando sem petróleo, o combustível da sua precária civilização. Os macacos estão poluindo e saqueando seu planeta como se não houvesse amanhã…
Os macacos gostam de fingir que está tudo bem. Alguns dos macacos realmente acreditam que o Universo inteiro foi feito para o seu próprio benefício…
Como você pode ver, eles são uns macacos atrapalhados. Eles são, ao mesmo tempo, as criaturas mais belas e mais feias da natureza!
Mas os macacos não querem ser macacos.
Eles querem ser outra coisa…
Mas não são!
Ernest Cline (1972-), peça falada, Seattle National Poetry Slam (?).