
Se você colocar o governo federal para administrar o deserto do Saara, em cinco anos haverá falta de areia.
MILTON FRIEDMAN
BALBUENA / PEXELS.COM
O labirinto da ANVISA: Um passeio pela lógica
seletiva que adoece o Brasil
Editorial
Toda nação precisa de seus guardiões. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) se apresenta ao Brasil com essa nobre missão: ser a muralha técnica, o filtro científico que separa a população dos riscos farmacê-uticos, garantindo que apenas o seguro e o eficaz cheguem às nossas prateleiras. É um trabalho vital. E é exatamente por isso que, quando examinamos o que essa zelosa guardiã decide barrar em nossas fronteiras, não encontramos apenas prudência; encontramos um padrão de lógica tão distorcida que beira o surreal, o incrível e o fantasioso.
Vamos fazer um exercício. Imagine que você é um técnico da agência. Chega à sua mesa o pedido de registro do pitolisant (Wakix®). Você lê o dossiê: aprovado na Europa em 2016, nos EUA em 2019. É para narcolepsia. Qual o mecanismo? Um antagonista de receptor H3, algo completamente novo. É estimulante, como as drogas que causam dependência? Não, ele é não-estimulante. Tem potencial de abuso? Não, tanto que não é controlado em lugar nenhum do mundo. O perfil de segurança? Excelente, validado por anos de uso em milhões de pessoas. Ele preenche uma lacuna? Sim, é uma alternativa elegante para pacientes que sofrem com a doença.
A decisão lógica, técnica e científica seria aprovar, correto? Pois bem, o pitolisant não existe no Brasil. A ANVISA, em sua sabedoria, aparentemente prefere que pacientes com narcolepsia continuem reféns do metilfenidato off-label ou de opções que nem sempre funcionam. O primeiro absurdo está aqui: uma droga inovadora, segura e não controlada é barrada sem explicação técnica plausível. Por quê? Mistério. Talvez para nos proteger dessa terrível onda de inovação europeia.
Mas se o caso do pitolisant é um mistério, o que dizer do tratamento para TDAH? Aqui, a ANVISA não apenas cria um mistério; ela escreve um roteiro de comédia ilógica. Acompanhe o raciocínio, pois ele é fundamental.
Nos Estados Unidos e em boa parte do mundo desenvolvido, uma das primeiras linhas de tratamento para TDAH, especialmente em adultos, são os sais mistos de anfetamina (por exemplo, o Adderall®). Existem desde os anos 90, com uma farmacocinética superior para muitos pacientes. No Brasil, essa droga é um tabu. Não temos. “Anfetamina” é um nome feio, afinal. A ANVISA nos protege desse mal. Só que mais ou menos.
Agora, segure-se. O que temos fartamente disponível em nossas farmácias, aprovado e celebrado pela mesma ANVISA? A lisdexanfetamina (Venvanse®). A lisdexanfetamina é o que chamamos de pró-fármaco. Ela é uma molécula inativa, inteligentemente desenhada para que, ao ser absorvida e metabolizada pelo corpo, ela se transforme… na substância ativa.
E qual é a substância ativa em que a lisdexanfetamina se transforma? Dextroanfetamina.
Pare e leia de novo. A ANVISA aprova, sem ressalvas, uma droga (Venvanse) que é dextroanfetamina disfarçada, metabolizada lentamente. Mas a mesma ANVISA proíbe terminantemente a dextroanfetamina “pura” ou os sais mistos. A lógica impecável da agência é: a anfetamina é segura e eficaz, contanto que venha com uma capa de invisibilidade metabólica. Se ela vier como ela mesma, torna-se um perigo para a sociedade.
Isso não é precaução, é um moralismo farmacológico que desafia a bioquímica básica. É como proibir a venda de laranjas, mas permitir livremente a venda de suco de laranja, alegando que a fruta inteira é perigosa. Se o problema fosse o risco de abuso, essa lógica já nasceria morta, visto que o metilfenidato, com potencial similar (e talvez maior acessibilidade ou desvio de uso na prática), é onipresente.
E como se não bastasse a incoerência na seleção das drogas, temos o fetiche burocrático pelos tais ‘estudos locais’. A ANVISA, em surtos de ufanismo regulatório, frequentemente exige que a indústria prove que uma droga — já validada e usada há décadas na Alemanha ou no Japão — funcione especificamente em corpos brasileiros. É como se a nossa fisiologia fosse uma jabuticaba evolutiva, onde o citocromo P450 se recusa a metabolizar moléculas que não tenham passado pela alfândega nacional. Além de ser um desperdício obsceno de recursos recriar a roda científica, essa exigência beira a imoralidade. Imagine submeter pacientes brasileiros a grupos placebo ou a tratamentos inferiores em um novo estudo clínico, apenas para satisfazer a curiosidade de um carimbo, quando a eficácia e a segurança da droga já são consenso global. Isso não é ciência; é um pedágio geográfico cobrado sobre a saúde humana, violando o princípio básico de não causar dano em nome de uma soberania de papel.
O que essa ginástica regulatória causa? Prejuízo ao paciente. O médico que entende de farmacologia fica de mãos atadas. Ele sabe que seu paciente poderia se beneficiar de uma liberação mais suave ou de uma duração mais previsível dos sais mistos, mas é forçado a usar o Venvanse, que, embora excelente, não funciona para todos, e por questão puramente farmacocinética.
Esse padrão de decisões incompreensíveis se espalha como uma infecção no arsenal terapêutico. A guanfacina XR, aprovada desde 2009 nos EUA e indispensável para TDAH com comorbidade de tiques, não tem nem perspectiva de chegar aqui. Formulações em solução ou dispersão de atomoxetina para facilitar o uso pediátrico? Aparentemente, crianças brasileiras não precisam dessa facilidade. Inibidores de recaptação de dopamina para sonolência excessiva, como o solriamfetol (FDA 2019)? Durmam em paz. Novos antagonistas de orexina para insônia, superiores aos benzodiazepínicos? Sonhem com eles, pois aqui não terão.
O resultado é uma medicina do improviso. É a criação de um “jeitinho farmacológico” onde médicos precisam usar criatividade off-label para contornar as lacunas deixadas por uma agência que parece mais preocupada em satisfazer lobbies de laboratórios com drogas me-too do que em priorizar a saúde pública.
O mais constrangedor é olhar para o lado. Nossos vizinhos – México, Argentina, Chile – com estruturas regulatórias supostamente menos robustas, possuem várias dessas terapias. O Brasil, que, em sua arrogância, se projeta como potência, está regulatoriamente atrás.
Não há como não concluir que a estrutura da ANVISA, apesar de técnicos supostamente bem formados, está paralisada por uma mistura de conservadorismo irracional, burocracia opaca e uma assustadora captura regulatória. A muralha existe, de fato. Mas ela não está nos protegendo de perigos; está nos isolando de soluções.