Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.

LUDWIG WITTGENSTEIN

JOHANNES / PEXELS.COM

ANOTAÇÕES

Ludwig Wittgenstein

O homem possui a capacidade de construir linguagens com as quais se pode exprimir todo sentido, sem fazer ideia de como e do que cada palavra significa […].
A linguagem corrente é parte do organismo humano, e não menos complicada que ele.
É humanamente impossível extrair dela, de modo imediato, a lógica da linguagem.
A linguagem é um traje que disfarça o pensamento. E, na verdade, de um modo tal que não se pode inferir, da forma exterior do traje, a forma do pensamento trajado; isso porque a forma exterior do traje foi constituída segundo fins inteiramente diferentes de tornar reconhecível a forma do corpo.
Os acordos tácitos que permitem o entendimento da linguagem corrente são enormemente complicados.

Tractatus logico-philosophicus

Maurice Merleau-Ponty

Se os horizontes espaço-temporais pudessem, mesmo idealmente, ser explicitados e o mundo pudesse ser pensado sem ponto de vista, agora nada existiria, eu sobrevoaria o mundo e, longe de que todos os lugares e todos os tempos se tornassem reais ao mesmo tempo, todos eles deixariam de sê-lo porque eu não habitaria nenhum deles e não estaria engajado em parte alguma. Se sou sempre e estou em todo lugar, não sou nunca e não estou em lugar algum. Assim, não se tem de escolher entre o inacabamento do mundo e sua existência, entre o engajamento e a ubiquidade da consciência, entre a transcendência e a imanência, já que cada um desses termos, quando é afirmado sozinho, faz aparecer seu contraditório.

O que é preciso compreender é que a mesma razão me torna presente aqui e agora e presente alhures e sempre, ausente daqui e de agora e ausente de qualquer lugar e de qualquer tempo. Essa ambiguidade não é uma imperfeição da consciência ou da existência, é sua definição.

Fenomenologia da percepção

Bronislau Malinovski

Ao captar a perspectiva essencial do outro, com reverência e compreensão reais, […] não é possível deixar de ampliar a nossa própria perspectiva. Não podemos alcançar a sabedoria final socrática de conhecer a nós mesmos se nunca superarmos os estreitos limites dos costumes, das crenças e dos preconceitos em que todo homem nasceu. Nada pode ensinar lição melhor nesta questão de irrevogável importância do que a predisposição mental que permite tratar as crenças e os valores do outro sob sua própria perspectiva.
Nem a humanidade civilizada [sic] jamais precisou dessa tolerância mais do que agora, quando preconceito, má vontade e vingança estão dividindo nações europeias uma das outras, quando todos os ideais, valorizados e proclamados como as mais altas conquistas da civilização, ciência e religião, foram lançados ao vento. A “Ciência do Homem”, em sua versão mais refinada e profunda, deve nos levar a esse conhecimento e à tolerância e generosidade, com base na compreensão do ponto de vista do outro.

Os argonautas do Pacífico Ocidental

Santo Agostinho

Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas, se quiser explicar a quem indaga, já não sei. Contudo, afirmo com certeza e sei que, se nada passasse, não haveria tempo passado; que, se não houvesse os acontecimentos, não haveria tempo futuro; e que, se nada existisse agora, não haveria tempo presente.

[…]

Mas o que agora parece claro e manifesto é que nem o futuro, nem o passado existem, e nem se pode dizer, com propriedade, que há três tempos: o passado, o presente e o futuro. Talvez fosse mais certo dizer-se: há três tempos: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro, porque essas três espécies de tempos existem em nosso espírito e não as vejo em outra parte. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança.

As confissões

Michel Foucault

Não se deve pensar que a medicina permaneceu, até nossa época, como atividade de tipo individual, contratual, entre o doente e seu médico, e que só recentemente essa atividade individualista da medicina se defrontou com tarefas sociais.

[…]

Pelo contrário, […] a medicina é, pelo menos desde o século XVIII, uma atividade social. Em certo sentido, a “medicina social” não existe, porque toda a medicina já é social. A medicina foi sempre uma prática social e o que não existe é a medicina “não-social”, a medicina individualista, clínica, do colóquio singular, apenas um mito mediante o qual se defendeu e justificou certa forma de prática social da medicina: o exercício privado da profissão.

História da medicalização [conferência]

O poder não existe. Quero dizer o seguinte: a ideia de que existe, em um determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece baseada em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado. […] O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.

Microfísica do poder

Gilles Lipovetsky

Com os modernos, consagram-se os princípios da liberdade individual e da igualdade de todos perante a lei: o indivíduo se afirma como o referencial último da ordem democrática. Pela primeira vez na história, as regras da vida social, a lei e o saber não são mais recebidos de fora, da religião ou da tradição, mas construídos livremente pelos homens, únicos autores legítimos de seu modo de ser coletivo. Enquanto o poder deve emanar da livre escolha de cada um e de todos, ninguém deve ser mais coagido a adotar esta ou aquela doutrina e submeter-se as regras de vida ditadas pela tradição. Direito de eleger seus governantes, direito de se opor ao poder estabelecido, direito de buscar por si mesmo a verdade, direito de conduzir a vida segundo sua própria vontade: o individualismo aparece como o código genético das sociedades democráticas modernas. Os direitos humanos são sua tradução institucional.

[…]

É inegável que, ao celebrar o sempre novo e os gozos do aqui-agora, a civilização consumista opera continuadamente para enfraquecer a memória coletiva, acelerando o declínio da continuidade e da repetição ancestral.

[…]

A essência do individualismo é mesmo o paradoxo. Ante a desestruturação dos controles sociais, os indivíduos em contexto pós-disciplinar têm a opção de assumir a responsabilidade ou não, de autocontrolar-se ou deixar-se levar.

Tempos hipermodernos

Friedrich Schiller

Uma coisa pode referir-se imediatamente a nosso estado sensível (nossa existência e bem-estar): esta é sua índole física. Ela pode também referir-se a nosso entendimento, possibilitando-nos conhecimento: esta é sua índole lógica. Ela pode, ainda, referir-se à nossa vontade e ser considerada como objeto de escolha para ser racional: esta é sua índole moral. Ou, finalmente, ela pode referir-se ao todo de nossas diversas faculdades sem ser objeto determinado para nenhuma isolada dentre elas: essa é a sua índole estética. Um homem pode ser-nos agradável por sua solicitude; pode, pelo diálogo, dar-nos o que pensar; pode incutir respeito pelo seu caráter; enfim, independentemente disso tudo e sem que tomemos em consideração alguma lei ou fim, ele pode aprazer-nos na mera contemplação e apenas por seu modo de aparecer. Nesta última qualidade, julgamo-lo esteticamente. Existe, assim, uma educação para a saúde, uma educação do pensamento, uma educação para a moralidade, uma educação para o gosto e a beleza. Esta tem por fim desenvolver em máxima harmonia o todo de nossas faculdades sensíveis e espirituais.

A educação estética do homem

Edgar Morin

À primeira vista, o céu estrelado impressiona por sua desordem: um amontoado de estrelas, dispersas ao acaso. Mas, ao olhar mais atento, aparece a ordem cósmica, imperturbável – cada noite, aparentemente desde sempre e para sempre, o mesmo céu estrelado, cada estrela no seu lugar, cada planeta realizando seu ciclo impecável. Mas vem um terceiro olhar: vem pela injeção de nova e formidável desordem nessa ordem; vemos um universo em expansão, em dispersão, as estrelas nascem, explodem, morrem. Esse terceiro olhar exige que concebamos conjuntamente a ordem e a desordem […]

Quanto à vida, também há a possibilidade de três olhares: à primeira vista, era a fixidez das espécies, reproduzindo-se impecavelmente, de forma repetitiva, ao longo dos séculos, dos milênios, em ordem imutável. E depois, ao segundo olhar, parece-nos que há evolução e revoluções. Como? Por irrupção do acaso, mutação ocasional, acidentes, perturbações geoclimáticas e ecológicas.

[…] e eis-nos confrontados com a necessidade de um terceiro olhar, isto é, de pensar conjuntamente a ordem e a desordem, para conceber a organização e a evolução vivas.

Ciência com consciência

Arthur Schopenhauer

Há duas histórias: uma da política e a outra da literatura e da arte. A primeira é a história da vontade; a segunda, do intelecto. A primeira é, portanto, em geral alarmante e até aterradora: ansiedade, medo, sofrimento, desengano, crimes espantosos em massa. A segunda, ao contrário, é por toda a parte agradável e serena, como o intelecto em isolamento, mesmo quando tal história oferece a descrição de caminhos equivocados. A sua principal vertente é a história da filosofia. Nesta reside, de fato, o baixo cifrado cujas notas se fazem ouvir também no outro tipo de história e que, mesmo aqui, fundamentalmente guia as opiniões que governam o mundo. Bem compreendida, a filosofia é, portanto, a mais poderosa força material, embora opere muito vagarosamente.

A arte de escrever

Louis Lavelle

A consciência não consente em se identificar com o corpo, que é para ela um companheiro cego e indócil, nem com o espírito, diante do qual é ora aquiescente, ora rebelde. O eu consiste precisamente nesse movimento de vaivém que alternadamente torna minha convivência mais estreita ora com um, ora com outro.

A consciência nos incita a agir para sair da imobilidade, mas também a só agir por uma finalidade capaz de nos satisfazer plenamente. A liberdade se exerce no intervalo entre essas duas aspirações, uma que nos impele, outra que nos retém, e oscila entre todas as aparências que a seduzem.

Assim, na consciência existe, a um só tempo, perfeição – visto que ela acresce o que somos, nos permite brilhar no mundo para além dos limites do corpo e nos dá uma espécie de posse espiritual do Universo – e imperfeição – visto que, ao mesmo tempo, ela é feita de idgnorância, de erro e de desejo. A consciência é uma transição entre a vida do corpo e a vida do espírito. É um perigo, visto que pode ser ultrapassado por ela. É uma interrogação perpétua, uma hesitação que não para de nos dar insegurança em nossa vida cotidiana; e, no entanto, é uma luz que nos guia para a segurança de uma vida sobrenatural.”

A consciência de si

Vilém Flusser

Quando os instrumentos viraram máquinas, sua relação com o homem se inverteu. Antes da revolução industrial, os instrumentos cercavam os homens; depois, as máquinas eram por eles cercadas. Antes, o homem era a constante da relação, e o instrumento era a variável; depois, a máquina passou a ser relativamente constante. Antes os instrumentos funcionavam em função do homem; depois grande parte da humanidade passou a funcionar em função das máquinas. Será isto válido para os aparelhos? Podemos afirmar que os óculos […] funcionavam em função do homem, e hoje, o fotógrafo, em função do
aparelho?

[…]

Aparelhos são caixas pretas que simulam o pensamento humano, graças a teorias científicas, as quais, como o pensamento humano, permutam símbolos contidos em sua “memória”, em seu programa […]

Em consequência essa sociedade negará a profundidade e elogiará a superficialidade. O seu instrumento não será a pá que escava, mas sim o tear que combina fios. Não será sociedade interessada em teorias, mas em estratégias. As regras que a ordenarão serão regras do jogo, e não imperativos (leis, decretos). O jogo dessa sociedade será o da troca de informações, e seu propósito, a produção de informações novas (de imagens jamais vistas). Será “jogo aberto”, isto é, jogo que modifica suas próprias regras em todo lance.

Filosofia da caixa preta

Cópia não autorizada: verificar lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.